Aristófanes foi um crítico de sua época e muito ousado ao fazer o povo rir de suas próprias instituições e do sagrado |
Compreendo a Literatura como expressão verossímil da subjetividade humana: ela tem o poder de representar o homem, em sua completude, de forma mais eficaz que os textos científicos. Despida da obrigatoriedade da factualidade, pode dizer por meio de figuras de linguagem e significar sem que o autor se comprometa com as palavras. A partir da reflexão sobre a estrutura de um texto literário, relacionando os signos linguísticos aos elementos exteriores, é possível identificar a filosofia, a cultura, a identidade de um povo, como ele se vê e como se representa.
Diferentemente dos gêneros literários clássicos gregos que precedem a Comédia, a epopeia e a tragédia, gêneros que representam a grandiosidade do povo e a valorização de suas conquistas, os textos cômicos apresentam elementos como a ironia e protagonistas que antes eram tecidos como perfeitos e incorruptíveis, agora são apresentados em sua totalidade com características consideradas como defeitos e são expostos de forma escrachada, incluindo personagens não humanos.
Na comédia “As rãs”, de Aristófanes, o trecho que mais se destaca é a interação entre o coro formado por rãs e Dionísio (deus, antes sagrado, ao qual eram oferecidos rituais e sacrifícios). No texto, Dionísio é apresentado como um ser frágil, medroso, folgado, além de não possuir características psicológicas esperadas para um deus, como inteligência emocional, maturidade e sabedoria. Acompanhado por seu escravo Xantias, Dionísio vai ao inferno com o objetivo de resgatar o tragediógrafo grego Eurípedes. Destaca-se, aqui, que a forma como o autor desenvolve a tessitura de seu texto infere o interesse de um romance por parte de Dionísio em relação à Eurípedes.
Como no gênero Tragédia, o coro era um elemento importante que representava a sabedoria dos anciãos, o coro em “As rãs”, pode ser interpretado como uma paródia ao coro dos anciãos, porém, o intuito do autor é demonstrar que essa parcela “sábia” e conservadora da sociedade não é tão sábia quanto o restante da sociedade espera e acredita que se seja, no entanto, nota-se que as rãs possuem o poder retórico capaz de persuadir e de desestabilizar um deus.
A teoria da Retórica, desenvolvida por Aristóteles, compreende bem este fenômeno de as rãs conseguirem persuadir. Para o filósofo, a persuasão ocorre principalmente a partir do Ethos, que se estabelece por meio da credibilidade de quem fala; do Pathos, que se estabelece a partir do momento em que o locutor compreende bem as convenções sociais e culturais e utiliza-se das crenças do auditória para desenvolver empatia ao falar; e através do Logos que é tecido nos argumentos e na ciência.
No caso das rãs, já que seus discursos não possuem nem mais tanta lógica e nem são coerentes à realidade, entendemos que o discurso é pautado apenas no Ethos: A credibilidade da tradição do coro em apresentar-se como o porta-voz da verdade. Aristófanes foi um crítico de sua época e muito ousado ao fazer o povo rir de suas próprias instituições e do sagrado. A partir da leitura da comédia é inevitável não traçar um paralelo entre nosso contexto pós-moderno. As rãs ainda existem. Estão espalhadas por aí aos montes, destilam seus discursos de ódio e mantem-se no “coro” e incomodando Dionísios.
Se Aristófanes escrevesse sua comédia em nosso contexto atual, quem seriam as Rãs?
Fonte: obvious
0 Comentários