Contraste que (quase) passa despercebido

O casal Antônio Francisco da Silva e Nara Raquel (foto) veio do Ceará para Brasília há mais de uma década, em busca de moradia e trabalho na capital.
A miséria e o poder dividem espaço na área central da capital federal. De um lado, o Congresso Nacional,  um dos monumentos mais significativos do País. De outro, cerca de 60 pessoas sobrevivem, em meio ao lixo, em barracos de madeira e papelão. Especialistas asseguram que a situação está fora de controle e exaltam a omissão do governo no combate às ocupações. Em contrapartida, a Secretaria da Ordem Pública e Social (Seops) alega que o trabalho é conduzido com cautela, tendo em vista a situação de vulnerabilidade em que os invasores se encontram.

Cerca de 60 pessoas sobrevivem, em meio ao lixo, em barracos de madeira e papelão.
A invasão próxima ao Congresso, que já dura 26 anos, é ocupada por uma família de catadores de papel. Crianças brincam em meio ao lixo e  convivem com ratos. 

A catadora Francisca Pedro, 65 anos, é uma das pioneiras. Veio do Nordeste para Brasília com a família em 1985, em busca de melhores condições de vida. Quase 30 anos depois,  em vez de alegria, coleciona tristeza. Hoje, ela mora com o marido, de 70 anos, em um barraco de madeira. “Trouxe meus filhos para cá e só vejo as coisas piorarem. Somos tratados como bichos pelas autoridades”, lamenta.

Debilitada fisicamente, a idosa relata que não recebe auxílio por parte do governo e   teme  a falta de condições físicas para trabalhar. “Não estou mais aguentando levar o carrinho de mão. Como catadora, ganho só R$ 200 por mês. Se perder até esse dinheiro, vou morrer de fome”, prevê Francisca.

Crianças
Sua filha, Maria Madalena dos Santos, 28 anos, chegou ao local aos três anos de idade. Hoje divide uma casa, improvisada com papelão, com cinco filhos e o marido. “Somos tratados como lixo. O meu sonho é que nos tirem daqui e nos alojem em algum lugar. É desesperador viver nessa situação e ver tudo o que meus filhos são obrigados a passar”, lamenta.

O momento mais desolador do dia, segundo ela, é o de dormir. “No meio da noite, me assusto com ratos andando pelo colchão. Isso aqui é um inferno na terra”, sustenta.    

De acordo com ela, a maior parte da renda da família é oriunda do Bolsa Família. Ao todo,  recebe R$ 800 do governo. “Como eles estudam, preciso desse dinheiro para garantir o mínimo. Não abro mão de garantir a educação, pois só isso pode fazer com que eles tenham uma vida diferente”, conta.

Além dessas dificuldades, Maria   enfrenta outro drama: o autismo de sua filha, de quatro anos. “Ela ainda não fala e vive no mundo particular. Sei que precisa de um acompanhamento médico, mas não tenho condições de pagar  nem consegui vaga na rede pública”, lamenta.

A catadora Rosângela, 34 anos, é mãe de oito filhos e sonha com um futuro promissor para todos. Ela, que também é filha de Francisca Pedro, tem o semblante do sofrimento acumulado ao longo dos anos. “Se eu continuar aqui, as coisas só vão piorar. Meus filhos podem começar a usar drogas e entrar no mundo do crime”,  teme.

Versão Oficial
Por meio de nota, a Secretaria de Ordem Pública e Social (Seops) explicou que há uma preocupação maior no final do ano porque, historicamente, o número de invasões aumenta por conta do Natal. Várias famílias migram temporariamente para a cidade em busca de doações e   constroem obras ilegais. Segundo o órgão, em um primeiro momento, a Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (Sedest)     oferece  benefícios sociais e a passagem de volta à cidade de origem. Sobre a invasão perto do Noroeste, o órgão afirmou que mandará uma equipe ao local.

Em busca de uma vida melhor
O cenário bucólico guarda um mundo particular em meio a uma das áreas mais nobres de Brasília. Bem perto dos prédios luxuosos do Setor Noroeste, nas proximidades do Setor Militar, há uma invasão onde vivem, aproximadamente, 20 famílias. Uma delas é a do catador Antônio Francisco da Silva, 36 anos. Ele está no local com a esposa Nara Raquel, 26 anos, há mais de dez anos e vive ali com mais quatro filhos pequenos.
 
De acordo com Nara, garantir o máximo de qualidade de vida aos filhos é uma prioridade. “Quando vamos pedir ajuda nas ruas, deixamos as crianças. Ainda existe muita gente boa. Já ganhamos cesta básica e ajuda em dinheiro”, disse. Para ela, acreditar faz toda a diferença. Por isso, não importa quanto tempo demore, ela anseia que todo o sacrifício valerá a pena. “Tenho esperança que um dia ganharemos uma casa. O resto a gente consegue com muito trabalho”, sonha. 
 
A família ainda tem outra importante missão. O filho Ruan, de cinco anos, sofre de epilepsia e precisa de acompanhamento médico. “Quando ele tem crise, chamamos o Samu. Para evitar que elas ocorram, ele precisa tomar um remédio que custa R$ 40”, destaca Nara. Segundo a mãe, ela não recebe auxílio para a compra do medicamento.
 
Adversidades
Quem vive rotina parecida é o jovem Antônio Carlos Soares, 28 anos, que também veio do Ceará e mora no local há mais de um ano. “Meu pai veio antes. Mas como não conseguia nada lá, resolvi tentar a sorte aqui”, ressalta. A rotina dele é pesada: acorda às 6h e percorre mais de 10 quilômetros recolhendo materiais recicláveis. “Mesmo sendo muito cansativo, o trabalho ainda é menor do que antes. No Ceará, eu enchia um caminhão de areia para ganhar R$ 10”, relata.
 
Ele conta que nunca recebeu a visita de um representante do governo no local. “Pelo contrário, às vezes passam com o carro de doações, mas não param aqui. Talvez seja porque achem que somos perigosos”, constata.
 
A também moradora da invasão Tatiane Ferreira da Paz, 20 anos, conta que já se acostumou com as adversidades. “Para defecar ou urinar, o único lugar é o mato. Luz, só na base da vela, e água pegamos no setor de abastecimento. Mas não acho que seja o fim do mundo. Tem gente que vive pior”, exemplifica.
 
Levantamento
De acordo com o subsecretário de Defesa do Solo e da Água da Seops, coronel Nonato Cavalcante, foi feito um levantamento de quase todos os pontos de ocupação no DF. “Encaminhamos o documento para a Sedest e só após esse levantamento é feita a retirada, oferecendo albergue ou a volta para a cidade de origem”, explica.
 
Trabalho e moradia
O casal Antônio Francisco da Silva e Nara Raquel (foto) veio do Ceará para Brasília há mais de uma década, em busca de moradia e trabalho na capital. Eles têm quatro filhos e moram em um barraco em uma invasão no Noroeste.  “Aqui não é fácil, mas no Nordeste é pior.  Pelo menos temos água”, afirma Antônio.  Para sustentar a família, além do trabalho com reciclagem, ele também recorre ao pedido de esmola nas ruas. “Só o que eu ganho aqui não dá. Então, pego a minha carroça e peço ajuda para as pessoas nas ruas”, explica o catador.
 
Invasões no histórico da capital do País
Segundo  o coronel Nonato Cavalcante, o trabalho de retirada dos moradores dessas invasões é feito sempre com o máximo cuidado possível, já que a maior parte das ocupações de área pública é por pessoas em situação de vulnerabilidade social. “Temos a preocupação social. Às vezes, aquele barraco é tudo o que a pessoa tem na vida”, conta o subsecretário da Seops.
 
Em relação à invasão que existe há 26 anos próximo ao Congresso Nacional, Nonato afirma que há uma situação singular. “Nós fizemos o cadastro das famílias que vivem lá, demandamos para a Sedest e a Codhab pediu para aguardar um pouco. O objetivo é que elas saiam de lá direto para a casa que irão receber”, disse. Ele ressalta que existem algumas ações programadas até o fim deste ano para combater as invasões.
 
No Passado
Na história do DF, a falta de controle das invasões trouxe consequências irremediáveis. Na década de 1970, com a Campanha da Erradicação de Invasões (CEI) foi criada Ceilândia. O nome da cidade, inclusive, é inspirado na sigla "CEI" e na palavra de origem norte-americana "lândia", que significa cidade (o sufixo inglês estava na moda). Hoje, a cidade conta com 460 mil habitantes, sendo que 49% dos moradores vieram de outros estados, principalmente da região Nordeste do País.
 
O objetivo era acabar com as invasões do DF e logo no início a cidade recebeu cerca de 15% da população. A consequência a longo prazo foi o crescimento desordenado da cidade, fazendo com que algumas áreas ainda estejam em processo de regularização, como os condomínios Privê, Pôr do Sol e Boa Vista. 
 
Cabe ressaltar que trajetória similar teve a criação de Samambaia e Santa Maria, na década de 1990. As cidades foram criadas para abrigar os moradores de ocupações irregulares. O mesmo aconteceu em 2004 com a criação da Estrutural para abrigar moradores de invasões espalhadas pelo DF.
 
Ponto de Vista
Para o presidente da Comissão de Direito Ambiental e Urbanístico da OAB-DF, Nelson Buganza, é de extrema necessidade a existência de um controle mais efetivo das invasões. “Ocorre uma descaracterização da cidade e isso só incentiva novas invasões. Quando se aproxima a época de campanha eleitoral, esses fenômenos acontecem com mais frequência”, garantiu. De acordo com ele, a grilagem de terras, muitas vezes, está associada às ocupações irregulares. “Existe uma impunidade muito grande quando o assunto é a grilagem. Os inquéritos não andam. Eu não entendo o motivo pelo qual o a Procuradoria do DF e o Ministério Público demoram tanto para tomar providências”, argumenta. Ele destaca que existe uma omissão de poder em todas as esferas. “Brasília é patrimônio mundial. Será que em outras localidades deixam acontecer isso com o patrimônio mundial? A questão social, que se dê  algum lugar ou que se pavimente, deve ser levada em consideração. Algo tem que ser feito”, determina. Para Buganza, há um sério risco de repetir os erros do passado. “Os tempos são outros, mas impunidade vem prosperando. Para se ter uma ideia, no DF existe um grileiro com 18 processos. Desse total, 17 foram para prescrição e tem um que está pendurado. É um caso emblemático”, relata.

Fonte: Jornal de Brasília 

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