O analista de sistemas Valdir Gonçalves toca sua cadeira pela rua.
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O ponto de partida do trajeto foi a unidade do Sesc-Belenzinho, na Zona Leste da Capital, local que frequenta várias vezes durante a semana para praticar musculação e natação. “Em São Paulo você tem ilhas de acessibilidade", observa Valdir. "Um exemplo é a região da Paulista e centros culturais como o SESC. Mas o grande problema é chegar até estes lugares”. O desafio proposto era sair de uma dessas “ilhas” e enfrentar a “realidade”: usando o metrô e as calçadas, ir até a região de Santa Efigênia, no Centro, para buscar o celular que Valdir havia deixado na assistência técnica.
O caminho até a estação Belém, apesar de curto, traz uma série de problemas, como calçadas inclinadas, que exigem grande esforço físico, pois sobrecarregam só um lado da cadeira. Em várias esquinas não há rampas e, quando existem, estão deterioradas, com buracos e desníveis. Outro problema frequente é o acúmulo de água na base das rampas, que impede a saída das cadeiras. Há também rampas improvisadas que, por não terem a largura necessária, podem travar as rodas das cadeiras e causar acidentes.
Não foram raras as vezes em que, por falta de alternativa, Valdir teve que trafegar pela rua, correndo o risco de ser atropelado. Na via que dá acesso à estação, por exemplo, teve que disputar espaço com os ônibus – não havia rampa para subir na calçada. “Geralmente, regiões com maior circulação de pessoas, perto de centros comerciais ou de alto poder aquisitivo recebem mais atenção da prefeitura", diz. "Mas quanto mais periférica a zona, pior a situação das calçadas”.
Ao chegar ao Centro a situação é um pouco pior – e os buracos são mais frequentes. “A cadeira não é feita para passar por buracos", conta. "Já danifiquei outra cadeira por causa disso”. A escassez de rampas o obriga mais uma vez a fazer boa parte do trajeto pela rua. Em um dos cruzamentos, a rampa está deslocada da faixa de pedestres e Valdir é obrigado a avançar sobre os carros parados no sinal.
Para o analista de sistemas, a preocupação com a acessibilidade não garante apenas a independência dos deficientes físicos, mas beneficia toda a população. “Rampas são utilizadas por idosos, mulheres grávidas ou pessoas que passaram por cirurgias. Todo mundo está sujeito a ter os movimentos limitados, mesmo que temporariamente”.
Índice de acessibilidade - A dificuldade enfrentada por Valdir é a mesma de milhares de cadeirantes. Segundo o IBGE, mais de 45 milhões de brasileiros (23,9% da população) possuem algum tipo de deficiência física no Brasil – o órgão não especifica quantos são cadeirantes. Dados divulgados nesta sexta-feira pelo IBGE revelam que o Brasil ainda carece de políticas públicas para garantir acessibilidade a quem usa cadeira de rodas, mesmo em locais com alto índice de urbanização e disponibilidade de serviços públicos.
De acordo com o estudo, nos municípios brasileiros, a maioria das faces de quadras (cada um dos lados da quadra, contendo ou não domicílios ou estabelecimentos) possui ruas pavimentadas (81,7%), dispõe de meio fio (77%) e oferece calçadas para circulação de pedestres (69%). Mas uma ínfima parcela (4,7%) possui rampas de acesso para cadeirantes. Esse índice sobe para 5,6% em locais onde há maior incidência de moradores com idade acima de 60 anos. A pesquisa, realizada de 1º de agosto a 30 de outubro de 2010 nas áreas urbanizadas dos 5.565 municípios brasileiros, apresenta um nível de detalhamento inédito, com foco em aspectos importantes da infraestrutura urbana, como questões referentes à circulação e o meio ambiente.
O índice de acessibilidade é baixo até nas cidades classificadas pelo IBGE como as que têm a melhor infraestrutura urbana. Nesses municípios, apenas 5,8% das faces de quadras possuem rampas de acesso para cadeirantes – mesmo que 80% delas possuam calçadas, 90% tenham vias pavimentadas e quase a totalidade (98%) disponham de ruas com iluminação pública. Nas cidades classificadas como “inadequadas”, o percentual de incidência de rampas para cadeirantes no entorno dos domicílios é ínfimo: 0,2%.
Imagem: A calçada ideal |
Garantia de acessibilidade
O Brasil tem cerca de 45 milhões de deficientes físicos. Apenas 4,7% das faces de quadra (cada um dos lados da quadra, contendo ou não domicílios ou estabelecimentos) possuem rampas de acessibilidade. Entre as capitais, Porto Alegre apresenta a melhor porcentagem (23%) e, Fortaleza, a pior (1,6%).
Inclinação: 8,33 graus
Largura principal: 1,2 m
Abas de acomodação: 50 cm
Comprimento: 1,80 m
Altura: de 15 a 18 cm
As rampas devem ser colocadas nos dois lados da calçada (parece óbvio mas, na prática, muitas vezes isso não acontece), na altura da faixa de pedestres. Não pode haver obstáculos que impeçam o acesso do cadeirante à rampa.
Não pode haver degrau entre a rampa e a rua.
Não pode haver acúmulo de água entre o fim da rampa e a rua.
Faixa de acesso (tamanho livre): áreadestinada à acomodaçãodas interferências resultantes da implantação, do uso e da ocupação das edificações existentes na via pública, autorizados pelo órgão competente.
Faixa livre (mínimo: 1,20 metro): local destinado exclusivamente à livre circulação de pessoas. Deve ser regular, segura e livre de obstáculos.
Faixa de serviço (mínimo: 70 centímetros): adjacente à guia, a área é destinada ao mobiliário urbano, como postes, telefones, lixeiras, árvores etc.
Fontes: IBGE, Associação brasileira das normas técnicas (ABNT) e Decreto 45.904, de 19 de maio de 2005.
Sem surpresa - A diferença é grande quando se compara o entorno dos domicílios cujos moradores possuem rendimentos mais altos com os mais carentes. Em locais onde as pessoas ganham mais de 2 salários mínimos, o índice de rampas para cadeirantes é de 12,2%. Em bairros que concentram moradores com rendimentos per capita de até um quarto do salário mínimo, o índice cai para 1%.
“Os dados, infelizmente, não trazem surpresa”, resumiu Carla Mauch, coordenadora da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) Mais Diferenças. Segundo Carla, o estudo revela a invisibilidade com que o tema sempre foi tratado, apesar dos avanços observados nos últimos anos – principalmente depois da instalação de leis de acessibilidade e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (2007).
“O quadro ainda é muito ruim e as transformações são lentas, porque o mais difícil é a mudança cultural”, disse. Carla ressalta que as ações de acessibilidade reduzem as diferenças e contribuem para a difusão do conceito de “equiparação de oportunidades”. A calçada, por exemplo, é o ambiente mais democrático e as rampas serviriam não só para cadeirantes, mas também para idosos, mães com carrinhos de bebê e pessoas com qualquer tipo de dificuldade de locomoção.
Regiões - Os números regionais seguem o mesmo padrão. A região Sudeste – onde o índice de urbanização é mais elevado, com 90,5% do entorno dos domicílios com pavimentação, 87,9% com meio-fio, 82% com calçadas e 73% com identificação das ruas – possui apenas 5% das faces de quadra com rampas para cadeirantes.
As regiões Sul e Centro-Oeste são as que possuem maior incidência de rampas, ambas com (7,8%), enquanto as regiões Norte e Nordeste têm os menores índices (1,8%). Entre os municípios com mais de 1 milhão de habitantes, Porto Alegre se destacou com a maior porcentagem (23,3%) e, Fortaleza, com a menor (1,6%).
Para o responsável pela comunicação da ONG Mobilize - Mobilidade Sustentável, Marcos de Sousa, além da pouca quantidade de rampas, deve-se observar a qualidade delas. A ONG realizou um “Levantamento das Calçadas do Brasil” em 12 capitais brasileiras, em que dá notas para aspectos como regularidade, largura, iluminação e obstáculos. “Há casos de rampas com um poste no meio ou com acúmulo de lixo. É indigno”, disse.
São Paulo - Na maior cidade do Brasil, apenas 9% das ruas possuem acesso para cadeirantes. O índice causou surpresa à deputada federal Mara Grabilli (PSDB). “Se estes 9% das rampas fossem bem feitas, já seria ótimo", afirmou. "Mas vivendo o dia a dia a impressão que dá é que este índice é ainda menor”. Segundo Mara, que é cadeirante, São Paulo possui 30 mil quilômetros de ruas asfaltadas e apenas 500 quilômetros de vias com alguma acessibilidade.
A deputada relata que até em bairros nobres é possível se deparar com rampas precárias, com obstáculos, degraus ou intransitáveis. “A Avenida Paulista é um exemplo, mas no resto da cidade não é assim”.
Cadeirante, a publicitária Juliena Nakayama, de 25 anos, conta que tem percebido uma melhoria nas ruas em relação à acessibilidade para quem tem dificuldade de locomoção. O problema, segundo ela, é que em locais privados, como shoppings e faculdades, há muito pouca adaptação. Entre os países que visitou, cita o Canadá como um bom exemplo. A Argentina, por outro lado, onde faltam rampas e acessibilidade no transporte público, é o exemplo negativo. “O Brasil está no meio”, resumiu.
Fonte: Veja on line
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